(...) “ Jouvenel faz outra distinção fundamental dentro do próprio redistributivismo. O moderno redistributivismo compreende dois elementos completamente díspares: a crença de que o governo deve estar centralmente envolvido no alívio da pobreza, e a crença de que a desigualdade econômica é, em si mesma, injusta ou prejudicial. Essas duas crenças têm estado fundidas, até, na crescente aceitação da visão de que é responsabilidade do governo assegurar à população padrões de vida ascendentes. Mais um passo é dado na direção do redistributivismo igualitário quando, à proposta de que o governo forneça um piso de subsistência abaixo do qual ninguém poderia cair, soma-se a proposta de que seja instituído um teto acima do qual ninguém possa ascender.
Como demonstra Jouvenel, tais
propostas igualitárias recebem o aparente apoio da invocação de um felicific
calculas que incorpora o argumento de que a renda tem utilidade marginal
decrescente – argumento que ele critica incisivamente, ao mostrar os
impedimentos insuperáveis a tentarmos
fazer comparações confiáveis de satisfação interpessoal. Jouvenel poderia
também ter observado que, mesmo se as utilidades fossem comparáveis de pessoa
para pessoa, a redistribuição segundo os princípios marginalistas teria
resultados moralmente perversos. Isso sancionaria a redistribuição dos recursos
desde os mais desvalidos (os paraplégicos debilitados, digamos) àqueles
situados principalmente na média da renda e com dotes naturais, que poderiam
gerar mais satisfação dos recursos. Esse não é um resultado congenial ao sentimento
igualitário, mas flui inexoravelmente do argumento marginalista da
redistribuição.
A crítica ética de Jouvenel
acerca do redistributivismo é poderosa e muito fundamentada. Ele desenvolve uma
crítica empírica importante do redistributivismo igualitário, quando observa
que os recursos necessários para prover a subsistência mínima não podem derivar
exclusiva, ou principalmente, da tributação aos ricos. Tais recursos têm que
ser extraídos das classes médias, que também são beneficiá- rias dos esquemas de
transferência de renda. Este é um ponto de vital importância na crítica de
Jouvenel. Sua percepção de que o desfecho do redistributivismo dos esquemas de
transferência é extremamente complexo e, às vezes, regressivo vem sendo
amplamente confirmada por experiências históricas mais recentes. Ele observa,
também, que uma política de redistribuição está fadada a discriminar as
minorias, já que, inevitavelmente, favorecerá as preferências e interesses da
maioria – fato esse também observado por Hayek.
Além disso, o redistributivismo é
condenado por Jouvenel por minar o sentido de responsabilidade pessoal. Nisso
incorre ao transferir dos indivíduos para o estado a autoridade por decisões
que lhes são vitais. Ao suprir todas as necessidades básicas do indivíduo, o
estado deixa-o com autoridade apenas na esfera de determinar como gastar os
seus trocados. Novamente, o efeito do redistributivismo é desprivilegiar a
família em favor de ficções legais como as empresas – principalmente por
conferir aos negócios imunidades tributárias negadas às famílias. O regime de
tributação elevada, inseparável do estado redistribuidor, tem ainda as
indesejáveis consequências de diminuir a esfera de serviços voluntários em que
as pessoas se engajam nas relações de convivência sem expectativa de pagamento
– e, com isso, corroer a cultura de civilidade que sustenta a civilização
liberal.
Para Jouvenel, no entanto, o
resultado mais profundo da política de redistribuição é o ímpeto que ela dá ao
penoso processo de centralização. Se o estado confisca rendas elevadas e impõe
índices penalizantes de tributação sobre a poupança e o investimento, o estado
tem que assumir as atividades de poupança e investimento que os indivíduos não
são mais capazes de assumir. Se, por causa do confisco das rendas elevadas, há
atividades sociais e culturais que não mais podem ser sustentadas pelo setor
privado, tais como o suporte para a alta cultura e as artes, então, uma vez
mais, o estado tem, através de um programa de subsídios, que assumir a responsabilidade
por tais atividades. Inevitavelmente, o estado vem a exercer um nível crescente
de controle sobre as mesmas. A consequência da política de redistribuição,
então, é a restrição à iniciativa privada em muitas esferas da vida social, a
destruição do homem de meios independentes, e o enfraquecimento da sociedade
civil.
Jouvenel vai além, especula que o
processo causal subjacente pode seguir na direção oposta: a política de
redistribuição pode ser um incidente num processo de centralização que adquiriu
um momentum próprio. Aqui, Jouvenel antecipa as constatações da 'Virgínia School
of Public Choice', teorizadas mais profundamente na obra de James Buchanan, que
demonstram as origens do estado expansionista nos interesses econômicos das
burocracias governamentais. Como Jouvenel, mais uma vez antecipando as
percepções de futuros teóricos sobre a da Nova Classe, prescientemente conclui:
Nós bem podemos imaginar quais desses dois fenômenos intimamente ligados é
predominante: redistribuição ou centralização. Podemos nos perguntar se não
estamos lidando com um fenômeno muito mais político do que social. Esse
fenômeno político consiste na demolição da classe que desfruta de “meios
independentes” e na concentração de meios nas mãos de administradores. Isso resulta
numa transferência de poder dos indivíduos para funcionários do governo, que
tendem a constituir uma nova classe dominante em oposição àquela que está sendo
destruída. E há uma leve, mas bastante perceptível, tendência rumo à imunidade
dessa nova classe, de parte de algumas medidas fiscais direcionadas aos
primeiros.
Teorias e fatos subsequentes corroboraram
firmemente a percepção de Jouvenel. Pesquisas empíricas revelam que os esquemas
de transferência de pagamentos das principais democracias do Ocidente carecem
de preceitos e são caóticos. O estado moderno do bem-estar social não é, na
mesma medida da criação da ideologia redistributivista, defensável por
referência a qualquer conjunto coerente de princípios ou propósitos. Ele não
aliviou significativamente a pobreza, mas, ao contrário, institucionalizou-a
substancialmente. Essa é a conclusão de estudos pioneiros, tais como 'Losing
Ground', de Charles Murray. Uma geração da política de bem-estar social infligiu
a seus concidadãos desincentivos e riscos morais tais, que acabou por deixá-los
em situação pior do que a inicial. O impacto resultante do conjunto inteiro de
medidas de redistribuição conforma-se a padrões não claros (salvo, como
observou Nozick, que se algum grupo social se beneficiar, provavelmente será a
majoritária classe média, e não os pobres). E a conjectura de Hayek, em 'The
Constitution of Liberty', de que o estado redistribuidor está fadado a ser um
estado expansionista, conforme advertira Jouvenel, vem cada vez mais se
concretizando com os acontecimentos.
Desenvolvimentos recentes no
questionamento filosófico confirmam a profundidade essencial da análise de
Jouvenel. 'Anarchy, State and Utopia', de Robert Nozick, contém uma crítica da
ideia da justiça social, ou distributiva, que forma um paralelo muito próximo à
crítica de Jouvenel sobre a ética da redistribuição. O ataque de Nozick, como o
de Jouvenel, tem vários elementos, ou estratos. Ele demonstra, antes de mais
nada, que a tentativa de impor um padrão sobre a distribuição social dos bens
requer contínua interferência na liberdade individual, uma vez que presentes e
livres trocas subverterão constantemente esse padrão. Como Nozick notadamente
afirmou, o resultado final da tentativa de impor um padrão à distribuição é um
estado socialista que proíbe atos capitalistas entre adultos que com esses
concordaram. A política redistributivista incorpora um individualismo abstrato
ou falso, no qual as instituições intermediárias que são a matriz indispensável
da individualidade são negligenciadas ou suprimidas. É especialmente hostil à
instituição que é a pedra fundamental da sociedade civil – a família. Nozick
segue Jouvenel, observando que sob qualquer regime de redistribuição a
instituição da família é desprivilegiada: «Sob tais visões, a família traz
transtornos; pois dentro de uma família ocorrem transferências que burlam a
distribuição permitida”.
É na obra mais recente de Hayek
que a análise de Jouvenel tem um paralelo mais notável. No segundo volume de
sua trilogia 'Law, Legislation and Liberty', intitulado 'The Mirage of Social
Justice', Hayek desenvolve uma crítica devastadora às atuais concepções
distributivas, reforçando e estendendo em direções completamente inovadoras o
ataque central da análise de Jouvenel. A primeira, e talvez a mais radicalmente
original, tese de Hayek, é de que nenhum governo ou autoridade central pode
saber o suficiente para ser capaz de conceber ou impor o padrão de distribuição
preferido. Isso é verdade, se os princípios de distribuição se referirem à
satisfação das necessidades básicas, vinculando recompensas a méritos,
realizando a igualdade de recursos ou de bem-estar, ou o que quer que seja.
Quaisquer que sejam os princípios da distribuição, o conhecimento necessário
para implementá-los, exceto nuns poucos casos-limite, é tão disperso por toda a
sociedade, e tão frequentemente em forma tácita ou prática, que geralmente é
impossível ao governo reuni-lo de forma utilizável. Essa irreparável dispersão
ou divisão do conhecimento na sociedade ergue uma barreira epistemológica
insuperável à realização de virtualmente todas as concepções distributivas
contemporâneas. Mostram-se inviáveis mesmo as mais sutis delas, como a de John
Rawls, porquanto o governo nunca poderia ter informação suficiente para saber
se o Princípio da Diferença (que requer que a desigualdade seja restrita ao
necessário para maximizar as posses dos desvalidos) foi satisfeito.
Há uma segunda linha de
argumentação em 'The Mirage of Social Justice' que reforça a causa de Jouvenel
contra a redistribuição. É o argumento de que, mesmo sendo o governo capaz de
adquirir o conhecimento necessário para implementar seus princípios de
distribuição preferidos, não há consenso na sociedade sobre como os diferentes
princípios deverão ser ponderados quando entrarem em conflito uns com os
outros. Se, por exemplo, a satisfação das necessidades básicas competir com a
premiação do mérito, qual delas deverá ter prioridade? Como a nossa sociedade
não contém qualquer código moral em termos de quais dessas considerações podem
ser comparadas, elas são para nós incomensuráveis, não havendo, em relação a
elas, qualquer procedimento razoável de arbitragem acordado. Por esta razão,
qualquer alocação de recursos em conformidade com uma ponderação desses valores
não pode evitar de parecer – e mesmo ser – sem princípios, impredizível e
arbitrária. Por causa desses conflitos inevitáveis entre seus valores
constitutivos, o redistributivismo inevitavelmente faz com que proliferem
burocracias com poderes amplamente discricionários. Mas a ampla margem de
autoridade discricionária exercida pelo aparato da redistribuição é difícil de
conciliar com o estado de Direito, que é uma das fundações de uma sociedade
livre.
Há uma linha final no argumento
de Hayek que o liga à análise de Jouvenel conforme James Buchanan. É a proposição
de que, na ausência de qualquer
justificativa – com base em princípios – da política de redistribuição, ela é
melhor explicada em termos dos seus beneficiários. O redistributivismo, então,
vem a ser inteligível como um sistema de ideias cuja função é legitimar os
interesses das burocracias expansionistas e, no geral, isolar dos efeitos
colaterais negativos da mudança econômica os grupos de interesses bem situados.
O redistributivismo, assim, emerge como a ideologia conservadora do estado
intervencionista e seus grupos de beneficiários. (...)”
(JOUVENEL, Bertrand de. A Ética da Redistribuição. Introdução)
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